O Texto Sagrado do Espírito Humano


Na tradição mística judaica, cada uma das letras da Tora (os cinco primeiros livros do Antigo Testamento) transporta um sem-fim de significados. Se justificarmos esta proposição com o fato de que Deus é o seu autor, não damos verdadeiramente uma explicação, visto que Este é uma fonte infinita de sentidos, contentamo-nos com dizer a mesma coisa por outras palavras. Por que é que cada letra contém uma infinidade de significados? Poder-se-ia chamar fecundidade infinita ao verdadeiro infinito, ao infinito criador. Ora, o que cria a significação das letras são as perguntas que lhes colocamos. Cada um dos novos significados surge em resposta a uma pergunta e existe um espaço infinito de questões possíveis. Um espaço cuja exploração não tem fim. Contudo, isto não será verdade para qualquer fenômeno, acontecimento ou mensagem? Para quem navega no ciberespaço, também são as perguntas, e muito concretamente (clicar aqui ou ali, interrogar um motor de busca, colocar uma questão num grupo de discussão), que fazem surgir o conhecimento.

Então, porque ler o infinito num texto revelado ou sagrado? Precisamente por este conter uma promessa tão poderosa em infinita fecundidade que tal profecia se tornou auto-realizadora. A imprensa de caracteres móveis para multiplicar a Bíblia. Foi assim que, em poucos séculos, a biblioteca universal floresceu. Graças à imprensa, a pequena enciclopédia portátil que a Bíblia era desenvolveu-se numa imensa biblioteca de milhões de tomos de direito, ciência e literatura. O caráter do manuscrito era sagrado pois, de certo modo, foi a boa semente, a virtualidade de sentidos infinitamente concentrada que começou a desabrochar com o tipo móvel da imprensa. O caráter sagrado foi o embrião da alfabetização e da imprensa, donde a difusão das Luzes, a ciência moderna e os direitos do homem. Porém, o destino da letra alfabética não se fica pelo tipo móvel. A hiperbiblioteca da Rede Mundial foi inventada para multiplicar a biblioteca. Doravante, todos os produtos da cultura formam um único hipertexto, uma ecologia das ideias, uma esfera da linguagem viva que depressa reunirá todos os humanos na sua vertiginosa expansão.

Na época do manuscrito, a inteligência coletiva desdobrava-se no tempo, os hermeneutas segregavam os Comentário pelo meio de um diálogo de um século para outro. Os pés do conhecimento puseram-se então em movimento: o questionamento infinito.

Na época da imprensa, a comunidade científica inventa a inteligência coletiva simultanêa: todos os membros levam as descobertas dos outros em consideração, recusam argumentos dogmáticos, nada escondem dos seus procedimentos (reprodutibilidade das experiências) e obrigam-se a ser originais, ao mesmo tempo que a interessar os demais. O tronco e os braços do saber ganharam força: o ciclo sem fim da teoria e da experiência que transformou o mundo a partir do século XVI.

Na época do ciberespaço, o conjunto da sociedade humana participa da inteligência coletiva. É a economia da informação. A produção de conhecimentos difunde-se em tempo real. A aprendizagem permanente mobiliza continuamente as mentes e as suas comunidades virtuais numa cooperação competitiva. É então que a cabeça do conhecimento vem incessantemente completar o corpo do saber humano: a visão direta de uma realidade infinita. Devido às camêras web, distribuídas por toda parte, com imagens provenientes de satélites, de radiotelescópios, de microscópios eletrônicos ou digitalizadores, tudo é visível de qualquer lugar. Quanto mais pratica a interligação e a inteligência coletiva, mais a humanidade se conhece a si mesma diretamente, sem passar por teorias sobre o outro ou pela mediação de poderes parciais. Contudo, esta realidade que o ciberespaço possibilita, longe de ser plana e finita, aprofunda-se e complexifica-se continuamente, em conformidade com o aperfeiçoamento dos instrumentos e a invenção de perguntas novas.

Crescimento da mente humana: a Bíblia, de onde a biblioteca germina, a partir da qual a hiperbiblioteca floresce. A economia da informação provém da ciência, que decorre da religião. Cada uma das novas etapas contém a anterior na forma de um caroço secreto.

O alfabeto, sistema abstrato de escrita que apenas assinala o som, foi inventado ao mesmo tempo que o monoteísmo que proíbe a representação. De ceto modo, o deus único é o alfabeto, a infinita fecundidade do alfabeto que hoje desenvolve no hipertexto planetário da rede. Todavia, seria justo acrescentar que o ciberespaço também provém de outra técnica de escrita, a dos números e, mais em particular, da invenção do zero. Foi necessário que o Médio Oriente inventasse o Uno (que inclui Múltiplo) com o alfabeto e que a Índia descobrisse o zero ao meditar sobre o vazio para que a mente humana se une a si mesma na noosfera. Zero, Uno. O Oriente e o Ocidente. A liberdade interior e a exterior haviam de se juntar para permitir que a mente humana levantasse voo.

Como, ao habitar o hipertexto talmúdico em vez de um território real, os judeus foram os primeiros a se terem transformado em comunidade virtual, talvez a sabedoria do povo da memória possa ajudar-nos a melhor abordar os tempos que aí vêm. O estudo da Tora, que se espera que um judeu pratique noite e dia, não é mais do que uma meditação sobre a justiça. No judaísmo, chama-se <> ao sábio. Com o objetivo de formar pessoas que julguem somente, o ensino tradicional faz os estudantes navegarem por um imenso hipertexto que é fruto do diálogo dos rabinos, que se interrogam entre si e emitem um sem-número de opiniões frequentemente contraditórias. Neste caso, o estabelecimento de um laço inesperado é visto como uma coisa boa e há perguntas novas que mostram aspectos novos dos problemas.

Por contraste, a retórica greco-romana não visava formar justos, mas sim advogados, tão hábeis a acusar a parte adversa quanto a defender a sua. Os argumentos lógicos, as provas factuais, a manipulação psicológica e o apelo aos lugares-comuns visam todos levar a melhor sobre o adversário. Em vez de aprenderem a colocar(-se) perguntas, exercitavam-se para as respostas inevitáveis.

A cibercultura – as suas comunidades virtuais, o seu correio eletrônico e as suas hiperligações – exige pessoas treinadas para o diálogo sincero e o entremear de pensamentos, não indivíduos formados para a manipulação persuasiva. Abandonemos então esta cultura de argumentos, partidários e acusadores para abrir o caminho a uma geração de justos.

O grande hipertexto em expansão da rede manifesta a interdependência dos seres humanos. Em breve, teremos todos a nossa página pessoal e estas agrupar-se-ão pelo meio de milhões de links. Poderemos nós continuar a pensar por <> que nos dividem? Não seremos nós habituados a perceber as ligações, isto é, a ter consideração por este vivo da mente e da linguagem que nos reúne? De acordo com o pensamento por ligações, em vez de um indivíduo ser membro de uma categoria ou ilustrar um tipo, identifica-se com tudo o que constitui a sua página, assim como ao sem-número de ligações que lhe visa o site ou irradia deste.

Aquilo que, no imenso e incircunscrevível novelo da cultura e da sociedade humana, abre o caminho já são as perguntas. No ciberespaço, como na vida, se não questionarmos os motores de busca ou os nossos parceiros de listas de discussão, se não clicarmos aqui ou acolá, não iremos a lugar algum, nada aprenderemos, ou então andaremos sempre em círculos e sempre nos mesmos. A interrogação anima o hipertexto, fá-lo acordar do seu nada e estender-se indefinidamente. Caso não houvesse perguntas, todas as respostas permaneceriam <>. Ao navegar pelo universo sentido, produzimos a realidade que responde as nossas interrogações: a voz fraterna dos nossos semelhantes. Somos letras vivas, luminosas, que infinitamente dialogam no texto sagrado da mente humana.

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